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PREPRINT - IMPACTO DA PANDEMIA NA EDUCAÇÃO MÉDICA: MIGRAÇÃO "COMPULSÓRIA" PARA O EAD

INTRODUÇÃO

A crise global ocasionada pela pandemia do SARS-CoV-2 vem impactando as sociedades em todo o mundo em diversos aspectos. São intensamente discutidas as mudanças na economia, relações profissionais, familiares, saúde e educação. Todas essas esferas já sofreram impactos importantes e certamente seguirão sendo impactadas no desenrolar da crise com chances de perdurarem por um período considerável após o controle da pandemia.

Neste cenário de caos, os ministérios da educação e da saúde vêm capitaneando uma série de medidas cujos impactos refletem em toda a sociedade brasileira, direta ou indiretamente. No âmbito da educação médica, por exemplo, o anúncio das aulas a distância no curso de graduação em Medicina do primeiro ao quarto ano, excetuando-se, por enquanto, as práticas profissionais de estágios e laboratório foi viabilizada legalmente. Isso gera impactos significativos na educação médica que podem influenciar enormemente o modus operandi dos cursos médicos em um futuro muito próximo.

ASPECTOS GERAIS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL

Segundo o Censo da educação superior publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) em 2019, a média de idade dos docentes atuantes nas instituições de ensino superior (IES) públicas e privadas é 38 anos (BRASIL, 2019). Esta faixa etária supõe que esses professores tiveram contato com avanços tecnológicos de maneira incipiente e foram educados em modelos tradicionais de ensino. Já os estudantes que adentram as salas de aula do ensino superior atualmente apresentam média de idade de 19 (ensino presencial) e 21 (ensino a distância) e são, majoritariamente mulheres (BRASIL, 2019). São, portanto, pertencentes a chamada geração-Z, nativos digitais, globalizados, acostumados a ambientes interativos e, por essas características, apresentam muita dificuldade de pertencimento aos modelos mais tradicionais de ensino, ao passo que são muito receptivos a novas estratégias de ensino-aprendizagem (MCCRINDLE, 2014). Estudos recentes demonstraram que eles são altamente receptivos a utilização de ferramentas online e a inserção de metodologias ativas de ensino (QUINTANILHA, 2017; QUINTANILHA; COSTA; COUTINHO, 2018) e, portanto, extremamente adaptáveis ao ensino a distância (EaD).

EaD NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO

Também por conta dessas características do alunado, o ensino a distância tem ganhado força no país nos últimos anos. De 2008 a 2018, o número de ingressantes em cursos de graduação EaD saltou de 463.093 para 1.373.321, ou seja, um aumento expressivo de quase 3x. Especificamente na graduação em Medicina, ainda há restrições para a modalidade EaD, como veremos adiante, por outro lado, para a educação continuada, a existência de cursos a distância sempre foi tida como benéfica e com o potencial de atingir profissionais residentes distante dos grandes centros e/ou com escassez de tempo (CHRISTANTE et al., 2003; LEITE et al., 2010; OLIVEIRA et al., 2013). Atualmente, existe no país um grande leque de opções de cursos de atualização abarcados por renomadas instituições.

CARACTERÍSTICAS DO EaD

A modalidade a distância de ensino cresce em alinhamento com as mudanças nos contextos sociais, como o acesso irrestrito a internet, escassez de tempo livre e outros fatores da relacionados à modernidade. Entende-se por educação a distância a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino-aprendizagem ocorre por meio de “pontes” tecnológicas entre o professor e os alunos que estão geograficamente separados (ALVES, 2011). Temporalmente, esta modalidade pode ser síncrona ou assíncrona, dependendo se a interação ocorre em tempo real ou não (MACHADO DA SILVA; MEIRELLES, 2015).

São relatadas inúmeras vantagens neste modelo de ensino tais como a flexibilidade, a universalização no acesso, a redução de custos e o alcance geográfico. Todos esses fatores são listados como características positivas do modelo EaD, o que faz com que o ensino a distância tenha percepções positivas e ganhe cada vez mais adeptos na Medicina e em outros cursos de saúde (GONZAGA FALEIRO; SALVAGO, 2018; ROCHA; CACCIA-BAVA; REZENDE, 2006; TOMAZ; VAN DER MOLEN, 2011). Porém, apesar do aumento substancial de cursos, a modalidade EaD no Brasil ainda carece de melhor preparação dos professores e tutores envolvidos no processo (LAU et al., 2017; PAVANELO; KRASILCHIK; GERMANO, 2018), além de ainda identificarmos alguma resistência por parte dos professores (PATTOI, 2013; SILVA, 2019). Isto pode estar relacionado à vários fatores como formação tradicional, a resistência e receio a mudanças, a escassez de tempo para treinamentos e de recursos e a inabilidade com recursos tecnológicos (OLIVEIRA, 2007; SILVA, 2019).

REGULAMENTAÇÃO DO EaD

O Ministério da Educação tem sido claramente favorável à expansão do EaD no país. O decreto 9.057/2017, por exemplo, permite que as IES ofertem exclusivamente cursos de graduação e pós-graduação lato-sensu a distância sem a necessidade de ofertar, simultaneamente, cursos presenciais (BRASIL, 2017). Em 2018 a oferta de cursos a distância contemplou, também, a programas de pós-graduação stricto-sensu (Mestrado e Doutorado) acadêmicos e profissionais.

A ampliação de vagas EaD universaliza o acesso, permite que estudantes do interior possam fazer seus cursos de graduação e pós-graduação e, com isso, aumenta a possibilidade de educação continuada em locais mais distantes, além de facilitar o atingimento das metas educacionais no país no âmbito das matrículas na educação superior. Outro indício nesta direção veio com uma resolução recente do MEC que aumentou o limite de oferta de disciplinas na modalidade a distância para cursos de graduação. A portaria 1.428/2018 dobrou o limite, de 20% para 40%, para a oferta de disciplinas EaD em cursos presenciais (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2018). De acordo com esta portaria, porém, esta regra não se aplica aos cursos das áreas de engenharia e saúde. Não se sabe como o EaD vai evoluir no país nem a velocidade com que isso vai ocorrer, porém é lógico, pelas evidências, construir a hipótese de que haverá um aumento generalizado da oferta desta modalidade de ensino, da qualidade e eficiência das tecnologias utilizadas por ela. A migração para este modelo na atual crise do SARS-CoV-2 pode contribuir imensamente para este cenário.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

O IMPACTO DA PANDEMIA NA EDUCAÇÃO MÉDICA

A pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 está mudando relacionamentos em várias esferas, social, familiar, relações de trabalho, na saúde e na educação. Neste atual cenário, o ministério da educação autorizou a oferta de ensino na modalidade a distância para as IES, porém proibiu o curso de Medicina de fazê-lo. Pouco depois, voltou atrás e permitiu que o curso de Medicina oferecesse a modalidade online nas disciplinas teórico-cognitivas do primeiro ao quarto ano (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2020).

Neste cenário, as IES, especialmente as privadas, majoritárias no país, conseguem garantir o cumprimento do cronograma e a entrada de recursos provenientes das mensalidades e matrículas. Por sua vez, apesar das controvérsias geradas, os estudantes têm garantido o direito de concluir seu semestre sem atrasos e com todo o conteúdo de suas disciplinas.

IMPACTO NO CORPO DOCENTE

Os professores, acostumados com o modelo presencial de ensino, tiveram que se adaptar rapidamente e de maneira compulsória a este novo formato. Sem tempo para a ambientação e o treinamento das “novas” tecnologias, notou-se claramente um forte movimento das IES no sentido de capacitar prontamente o seu corpo docente para o formato EaD. As ferramentas para isso, de maneira geral, já existiam, mas não eram utilizadas, ou eram subaproveitadas. Assim, o modelo EaD que vinha ganhando força em números de maneira gradual atingiu, repentinamente, quase 100% do ensino médico ofertado nos principais centros do país e os professores tiveram que, repentinamente, migrar todo o seu material de aula para uma ou mais plataformas online. Por outro lado, instituições que já haviam feito essa migração sofreram menos impactos porque a sua comunidade acadêmica já se ambientara com o modelo EaD.

O CENÁRIO ATUAL DO EaD NAS ESCOLAS MÉDICAS

Os principais centros do mundo já vêm praticando ensino a distância, o ministério da educação vem incentivando a modalidade EaD há algum tempo e, agora, boa parte dos professores se tornarão, obrigatoriamente, mais habituados com a modalidade. O que podemos prever? A utilização cada vez maior dessa modalidade pelas IES. Este é o cenário e os professores precisam se adaptar.

Para as instituições de ensino, investir no EaD é vantajoso pela possibilidade de redução de custos e maiores ganhos ao escalonar sua presença regional. Para os alunos é mais cômodo, econômico e habitual, pois são ferramentas que já fazem parte do dia-a-dia da geração. Neste âmbito, o modelo EaD traz flexibilidade, economia, respeita o tempo de aprendizado do estudante sem, contudo, se bem organizado, perder interatividade.

Já para os professores, apesar dos benefícios de terem suas aulas gravadas e/ou poder lecionar de qualquer local, o fato de poder ser utilizada de maneira exponencial traz uma consequência grave: a dispensabilidade da figura do professor. Aqui nós não estamos afirmando, de maneira alguma, que o professor não é essencial no processo, mas que um professor apenas pode ser o responsável pelas aulas de determinada disciplina para um número grande de estudantes/turmas o que, presencialmente, seria impossível, e, assim, gerar dispensas de outros professores envolvidos na mesma unidade curricular.

Apesar das vantagens já descritas, muito ainda se discute acerca da qualidade do ensino a distância. Por exemplo, a utilização de metodologias ativas, tão debatidas e utilizadas atualmente, carece de melhores adaptações e evidências de eficácia no modelo EaD. Por outro lado, apesar de haver a necessidade de estudos mais aprofundados, amplos e de melhor qualidade metodológica sobre o tema (FERNANDES; CARON; SILVA, 2020), a literatura traz evidências de eficácia igual ou até mesmo superior ao ensino presencial desde que a modalidade a distância contemple métodos que permitam o alcance dos objetivos da disciplina/curso, haja interação dos estudantes e feedback do professor (FONTAINE et al., 2019). As travas de qualidade que ainda possam existir provavelmente serão solucionadas com muita brevidade conforme a modalidade a distância vá ganhando mais adeptos, a concorrência aumente e as tecnologias evoluam. Neste sentido, destacam-se como fatores desfavoráveis a universalização do EaD no Brasil, problemas de acesso (conexão) e inabilidade dos professores e tutores com as ferramentas utilizados nesta modalidade.

Esta mudança de paradigma educacional que estávamos passando e que, com a pandemia corrente, fomos obrigados a acelerar, pode, portanto, significar mudanças substanciais na relação de trabalho. Migração para o modelo de trabalho por contrato ou pessoa jurídica? Oportunidades para os professores desenvolverem novas habilidades e ferramentas com retorno financeiro? Não sabemos ainda. Mas já passou da hora de refletirmos acerca do tema.

CONCLUSÕES

Na nossa visão, excetuando as unidades curriculares com óbvia necessidade de conteúdo prático e, portanto, com atividade presencial e de laboratório indispensáveis, todas as outras disciplinas poderão migrar para o modelo EaD em um curto espaço de tempo com incremento de qualidade constante devido a disponibilização de novas ferramentas tecnológicas, adaptação das IES e capacitação docente. Assim como ocorreu em outras profissões devido a inovação tecnológica, chegou a hora dos professores passarem por transformações profundas na sua configuração de trabalho. Isso vai causar demissões e redução de proventos? Não sabemos. Pode abrir novas perspectivas? Ninguém sabe ao certo. Impactará na qualidade dos formandos? Ainda é cedo para afirmar, pois, apesar de em expansão, ainda há poucos estudos na área (DA SILVA; GOMES PIMENTA DE CARVALHO; CONZI MEHLECKE, 2018; MILL; OLIVEIRA, 2014). Em breve vamos precisar nos familiarizar com o conceito de Educação (Médica) baseada em evidências para termos certeza disso tudo. Mas, que a educação médica pode ser profundamente transformada a partir dessa crise global de saúde, isso é inegável. Aliás, já está sendo.

REFERÊNCIAS

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